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15 de maio de 2011

Nordeste: A Isabel que virou santa na Ladeira das Pedras

Ladeira das Pedras, que serpenteia entre Guaraciaba do Norte e Reriutaba, Noroeste do Ceará, é um lugar de passagem. Desses onde tudo cumpre o seu destino: a mata desabrocha ao toque do tempo, as quedas d’água brincam de esconde-esconde nas entranhas da serra, os pássaros ensaiam sinfonias, Eronilda espera Joaquim voltar do roçado, e espera o dia de parir, e espera a chuva. Na Ladeira das Pedras, a finada Isabel também cumpriu seu destino.
Foi assim, dizem. Isabel Maria da Conceição (1901-1929), que trazia a brandura e a formosura de cada nome seu, casou-se com Antônio Raimundo Nonato da Silva, marido desconfiado que tinha ciúmes até dos cabelos longos da mulher. Devotou-se à casa e ao filho único, Antônio Raimundo da Silva, reforçam as narrativas que costuram o martírio. Um dia, afoitou-se: alterando um pouco a rotina, cortou os cabelos.
Raimundo cismou com a novidade. Imaginou uma traição e acreditou mortalmente que Isabel havia cortado os cabelos para a satisfação do amante. Em pleno desvario, armou-se com uma faca, pôs a cangalha no jumento, fez Isabel e o menino de carga e desembestou para os altos da Ladeira Grande. Encoberto pela serração daquela hora funesta, Raimundo esfaqueou Isabel até que existissem apenas os gritos e o choro do filho que assistia à morte da mãe. Rebolou o corpo no vão da serra e sumiu pela cerração.
Eronilda, 38, e Joaquim Araújo Damasceno, 40, se admiram ainda hoje do destino da finada Isabel. “O que impressiona a gente é essa história do cabelo, que provocou a morte”, repetem, em coro, a tragédia “que os velhos contam”. O casal é um dos poucos que se assentaram na Ladeira Grande, depois que a CE-257abriu horizontes. Do alpendre de casa, avistam a “cruz da finada Isabel”, fincada no ponto onde imaginam que Raimundo martirizou a mulher.
A cruz sinaliza uma ermida que acolhe fotografias, ex-votos e promessas à finada. Curiosamente, entre os objetos deixados pelos devotos da popular “mártir de Guaraciaba do Norte”, há muitas madeixas e prendedores de cabelo. Da cruz de Isabel se fez uma esperança, comum a inúmeras mulheres que convivem com a violência doméstica.
Dali a Reriutaba, a crença na finada Isabel se multiplica. Padre Emídio Gomes, vigário do município, até concorda que a dona de casa se tornou “uma santa canonizada pelo próprio povo”. Reconhece o extraordinário no fato de o jumento, depois que Raimundo matou Isabel, ter trazido o filho do casal a salvo de volta para casa, “uma criança de três anos e pouco, sozinho, cerca de 30 quilômetros”.
Mas, ao invés de milagres, o padre prefere falar em libertação. Primeiro, a libertação do sofrimento silencioso. “O povo se identifica com aquele sofrimento e com o suspiro de liberdade que aconteceu… Ela foi um suspiro de liberdade diante de uma cultura machista”. E há uma libertação maior, que Isabel e os santos do povo significam. Na interpretação de padre Emídio, a religiosidade popular é o “espaço de liberdade onde o povo conversa com Deus sem precisar de intermediário”.
Isabel foi esfaqueada pelo marido no dia 11 de outubro de 1929. Depois do assassinato, Raimundo foi preso, mas fugiu da cadeia. Não souberam mais dele. Antônio Raimundo da Silva, que testemunhou o assassinato da mãe, suicidou-se aos 80 e poucos anos, conta padre Emídio – que o pastoreou por 20 anos. Padre Emídio conta que o filho de Isabel viveu da roça, alimentou 12 filhos, era “bem casado”. E nunca esqueceu “a mãe gritando e o medo que passou em cima do jumento”.

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